Loading...

Textos

Statement da artista

Imagine um fóssil, que é quando o corpo de algo que era vivo se petrifica e pode durar por tempos geológicos. Eu sou encantada com a ideia da pedra, de virar pedra. No sentido de quando o meu corpo já não estiver aqui, de ser uma maneira de permanecer.

Eu gosto muito de pensar na natureza dos materiais. O vidro é uma mistura de areia de praia com calcário. Quando a gente mistura esses 2 materiais  e leva a altíssima temperatura, a gente cria esse novo material que é o vidro. O vidro é um material que apesar da fragilidade, existe também a possibilidade de se recompor. Ele pode ser quebrado e refundido várias vezes que ele não perde as suas qualidades. O vidro é também um dos materiais que mais demora pra se decompor na natureza, e quando ele se decompor, voltar a ser o que era antes, areia do mar.

Se a gente pensar nesse retorno, nesse ciclo, e nos princípios da permanência e da impermanência, o vidro nos dá uma pista de que não são opostos. A matéria tem suas conversas, suas preferências, suas associações. A matéria é o exemplo da permanência, do perene. O que se transforma são os estados, a sua aparência física. Os estados são o exemplo da impermanência.

E nesse caso, os elementos associados que provocam a mudança de estado são: o fogo, pressão e o tempo.

O vidro é um mineral raro na natureza. É também um mineral que a humanidade aprendeu a produzir. É uma mistura de sílica (areia) com calcário. O calcário é o carbonato de cálcio, a mesma matéria de que é feito as conchas do mar, mesma matéria de que é feito nossos ossos e dentes.

Fisicamente, o vidro tem a aparência e a dureza dos cristais. Mas se você observar microscopicamente, seu comportamento (agrupamento molecular) é desorganizado. Sua natureza química é de um líquido. E por conta desse seu caráter ambíguo, é considerado também um 4º estado da natureza: o Vítreo. É um estado transitório, um atravessamento.

Texto Curatorial, por Edson Barrus Atikun

FOTO FÓSSIL, operação da imagem ao fóssil


cérebro de jovem virou espécie de vidro orgânico durante erupção do vulcão Vesúvio. Transformação é atribuída a condições especialíssimas de calor e resfriamento rápido.

https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2025/02/cerebro-dejovem-virou-especie-de-vidro-organico-durante-erupcao-do-vulcao-vesuvio.shtml


Fragmentos de até 2 cm do cérebro de vidro foram encontrados. Guido Giordano

Quando penso na fotografia tendo o vidro como suporte, na arte contemporânea, vem-me a mente a instalação realizada por Alex Flemming na estação de metrô Sumaré em São Paulo. Flemming imprime as imagens fotográficas sobre o vidro, em um trabalho planar que se deixa atravessar pelo ambiente, capturando toda a profundidade do espaço.

Alex Flemming. Metrô Sumaré

Na subsérie Vidros, Geraldo de Barros criou sanduíches de vidros com fotografias já impressas e negativos. Esses objetos utilizam em sua construção, indistintamente, fragmentos de positivo e negativos, em cores ou P&B, onde ele monta fragmentos esmaecidos de imagens em vidros com espessura de 1mm, que superpostos criam a ilusão de profundidade e tridimensionalidade.

Geraldo de Barros. Vidros

Recentemente estive na exposição Le Monde Selon l’IA, e encontrei-me pensando nos fotofósseis de Kelly ao me deparar com o trabalho de Julian Charrière. Ele cria “formações geológicas” da fusão em um forno de materiais informáticos de diversos tipos misturados com terras raras. Por essa vontade de dar visibilidade e permanência aos processos/materiais invisíveis, um do mundo corporal e outro da realidade virtual da Inteligência Artificial. Em seu enunciado, Saura quer dar permanência as imagens fundindo-as com superfícies minerais, priorizando o vidro.

Julian Charrière. Metamorphosis

Saura trabalha com fotografia no suporte vidro, fundindo a imagem no vidro em um processo de altíssima temperatura. O vidro, material frágil que resulta da mistura de areia de praia (sílica) com calcário fundida a 1400-1600°C, pode ser quebrado e refundido várias vezes sem perder suas características. É um material de lentíssima decomposição e se decomposto volta a ser areia do mar.

“Geralmente eu me fotografo e essa fotografia vira uma peça quando eu sinto que atingi algum estado interessante e diferente. As minhas primeiras imagens eram as radiografias porque eu achava incrível poder “revelar o interior do corpo”. Mas a radiografia é negativo e a ideia era fazer um positivo. E o interessante de fazer isso em vidro é ter um suporte que também permite ver a luz passar o corpo da gente, permitindo ver o interior. Quando eu consegui revelar radiografias, eu tinha feito a peça que era a Coluna, então continuei a trabalhar com vidro, e daí então eu começo a me fotografar, nessas fotografias que são registros de performances, e essas fotografias lembram muito estados, estados internos”.

Saura costuma enfatizar a técnica do trabalho que percebemos. “Um tipo de fotografia que eu acho das mais incríveis são essas que fazemos do interior do corpo. Radiografias são negativos fotográficos. A pesquisa #fotovidro surgiu de um desejo de positivar essas imagens. A escultora @nataliagerschcovich adaptou a técnica da goma bicromatada por ser uma técnica de transferência por contato. Ao processo, adicionamos a fundição posterior e temos imagens fossilizadas no vidro, esse mineral manipulado, o primeiro novo material criado pelo humano, um corpo/matéria que reflete nosso estado interno.”

A arte funcionando como dispositivo que permite mundos originados no que a artista entende/percebe/inventa e no que esse processo se revela.

“O que estou a fazer são pinturas rupestres e fósseis contemporâneos. Eu vejo o gesto de fazer como arte, e as peças mais como artefatos arqueológicos mesmo. Produzidas para o futuro, e que só vai fazer sentido no futuro” – Diz a artista.

Porém, a discussão técnica sobre fotografia, radiografia, fusing glass, a sílica e o calcário que compõem o vidro, não são fundamentais para abordar a cristalização de um conjunto de imagens autoreferenciadas em suportes que permitem a passagem da luz.

A artista afirma que “(…) vidro, tem muito a ver com a coisa de revelar o interior, tanto de revelar como interior, ou de querer voltar para esse interior, como se fosse uma força da natureza ctônica, de dentro da terra.”

Perguntei “por que cavar, porque voltar pro interior?’

” Porque é como se fosse um desejo. A última fotografia que eu tirei ano passado, chamei de “intrusiva”, que é essa vontade de voltar para o interior da terra, entrar dentro das pedras, aproveitar a fenda dela ou cavar a terra, cavar um buraco, estar lá dentro, não como um processo de morte mas como um processo de estar dentro, de habitar o interior mesmo.”

Como yann beauvais observa, a fotografia se interessou profundamente em representar essa interioridade, a ponto de se apropriar de ferramentas como os raios X para revelar a estrutura dos esqueletos, bem como o interior dos corpos — sejam eles humanos ou não — assim como o mundo vegetal ou mineral. Podemos pensar em Anna Atkins e seus cianótipos, ou mais recentemente em Nick Veasey, que atualiza o trabalho do pioneiro Wilhelm Röntgen com os raios X. Trata-se de revelar o que até então era invisível ou imperceptível ao olho humano, dentro dessa busca entre arte e ciência, por meio do desenvolvimento de novas técnicas ou ferramentas que se unem através da experimentação. Assim, o radiograma é outra forma de mostrar, expor plantas, seres, etc. — como na série de Anaïs Tondeur sobre os radiogramas das plantas de Chernobyl, cujas imagens são perturbadas pela
radioatividade presente nelas. (trad.livre).

Anna Atkins. Cyanotypes
Nick Veasey. X-Ray Men
Anaïs Tondeur. Chernobyl Herbarium

Saura captura suas imagens, são autorretratos – há um espaço de tempo entre o momento da captura e momento da revelação. E a fala técnica de Saura, se transforma: ” A fotografia deixa de ser uma imagem técnica e ganha contornos mágicos, de incerteza. A revelação fotográfica como um fenômeno da natureza. Neste caso, os estados da natureza no momento da revelação tem agência, interferem bastante e eu faço assim de modo proposital.”

Saura reproduz as imagens, a partir de um banco de negativos que considera matrizes das quais ela as refaz. O trabalho se reinventa a partir das obras anteriores, em tempos e formatos distintos. Como as imagens de Corpo Pétreo, que compõem obras de 2019 e 2022.

Com evidentes diferenças, o trabalho de Arthur Leandro incorpora operações plásticas que dialogam com Fotofóssil.

Arthur Leandro em Nunca Fomos tão Felizes (intimidade familiar/ não dito/ não visto), usa resina, vidro e acetato. Que poderíamos ler como fossilizações (eternização pela escultura) de “momentos familiares”. Arthur descobriu no escritório desativado do pai-avô “pesos de papel de vidro que tinham no fundo de suas bases fotografias de parentes, e então, construiu objetos “sobre a forma como a família guarda suas imagens e se perpetua”: fotografias reproduzidas em transparências, montadas em fundos de garrafas cheios de resina e poliéster, colocados em tijolos ou bases de vidro, com aplicação de betume dando a sensação de envelhecimento. O artista resgatou imagens de seus antepassados em álbuns de família, seu banco de matrizes. Os personagens das fotos, em cenas de casamento, batizados, passeios, estão sempre sorrindo, a felicidade eternizada pra sempre, pela imagem do sorriso.

Arthur Leandro. Nunca Fomos tão Felizes


Para Saura, radiografias são negativos fotográficos e a sua pesquisa traduz-se no desejo de positivar essas imagens feitas do interior do corpo, fossilizando-as no vidro, esculturas que reflete “nosso estado interno”. Ao seu banco de imagens são adicionadas outras, sempre crescendo. Saura não controla o aparecimento de novas imagens, que resultam de acontecimentos inesperados, situações em que ela se fotografa. “Geralmente quando eu coloco a câmara e produzo esses autorretratos, eu me encontro numa situação de transição ou contemplação ou de mistério. A maioria das vezes essas fotografias são feitas em lugares onde eu viajo, onde existem pedras, onde as pessoas têm uma relação especial com as pedras, são lugares de força.”

Imagens transitam rapidamente e repentinamente, não lembramos mais de algo visto no feed instantes atrás. Aqui e agora e ali também. Estou aqui neste trem, uber, restaurante, museu, fazendo algo qualquer e ao mesmo tempo conectado com um mundo da tela do celular (ou do livro que também nos reconecta mundos outros). E o trabalho de Kelly quer fixar, eternizando essa imagem cada vez mais desmaterializada. Saura fala ‘do momento em que o corpo-vivo se petrifica e permanece por tempos geológicos. Tornar-se pedra’. Oportunidade para lembrar de povos que consideram as pedras naturais como morada de espíritos ou deuses, e culturas que as utilizam como lápides. E a arte como dispositivo de permanência do corpo, que permite a radical aposta de Orlan de ser “conservada /preservada” por tempos quem sabe geológicos. De ter seu corpo resultado de sucessivos procedimentos estéticos, como obra de arte enterrada no Museu do Louvre.

La Réincarnation de Sainte-ORLAN ou images nouvelles-images, Première opération-chirurgicale-performance dite La Licorne


O fóssil é a permanência por tempos geológicos, diz Saura, que em gesto inverso da temporalidade da imagem sintética, investe na petrificação da imagem como permanência em forma de fóssil, de pedra. A artista descreve sua prática como uma investigação das “tecnologias do tempo”, criando imagens fósseis que registram a passagem humana.

Habituamo-nos a saber de reconstruções da aparência de indivíduos pré-históricos a partir dos seus respectíveis fósseis encontrados. Exemplos não faltam: Reconstruções da aparência de dois indivíduos neandertais do Museu Neandertal de Mettmann, na Alemanha. O rosto de ‘Ernesto’, reconstruído a partir de crânio de cerca de 2 mil anos de idade encontrado em sítio arqueológico na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Mulher tem rosto reconstituído com base em crânio de 31 mil anos de um dos mais antigos de Homo sapiens encontrados na Europa. Entre as inúmeras peças abrigadas no Museu Nacional do Rio de Janeiro, destruído por um incêndio, estavam o crânio de Luzia e sua reconstituição facial. Luzia é de inestimável valor científico por se tratar do mais antigo fóssil humano já encontrado no Brasil e nas Américas.

crânio-rosto de Ernesto
crânio de Luzia

Saura inverte e opera ‘da imagem ao fóssil’ “- Para mim, essas imagens esculturas são como as Vênus paleolíticas.”

Vênus Paleolíticas

Fotofóssil retorna. inverte a lógica partindo da imagem ao fóssil ancestral. Um retorno ao fóssil que sugere a imagem via processos de modelagem dentro lógica arqueológica do fóssil à imagem.


Paris, maio de 2025

To top